SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A voz que foi tolhida por disparar “fora, Bolsonaro” se levanta para reunir 50 crianças e adolescentes, de 6 a 16 anos, em torno de uma rede de vôlei na praia do Leblon, no Rio de Janeiro.
A jogadora Carol Solberg, 34, incomodada com a desigualdade social, conseguiu colocar de pé, desde agosto, o Instituto Levante. O projeto promove aulas gratuitas da modalidade, duas vezes por semana (às terças e quintas), acompanhamento com psicóloga, passeios culturais e serve refeições após as atividades na areia.
Idealizado antes mesmo da pandemia de Covid-19, a atleta aproveitou o tempo livre com o adiamento dos torneios para estruturá-lo e resolver as partes burocráticas, como constituir um CNPJ (Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica).
Também visitou projetos sociais e pediu conselhos para o judoca medalhista olímpico Flávio Canto, responsável pelo Instituto Reação, criado na Rocinha, em 2004.
Sem o aporte de patrocinadores ou benefícios da Lei de Incentivo ao Esporte, Carol comprou com recursos próprios todo o material esportivo -itens como bolas, redes e uniformes- e se propôs a bancar salário para alguns profissionais, enquanto consegue reunir outra boa parte da mão de obra de forma voluntária.
No começo, a jogadora era quem produzia os quase 100 sanduíches em sua casa para oferecer aos alunos , mas recentemente passou a contar com a ajuda da Mega Natural Alimentos -acordo válido até o final deste ano. Já o suco natural é oferecido por uma empresa, a Greenpeople.
“A ideia foi [ensinar] o vôlei, mas quando penso no projeto Levante, uso minha rede de amigos para cada um ajudar como quiser. Por exemplo, se tenho um amigo que toca violão, ou que dá aula de danças, eu convido para fazermos um aulão. O esporte é uma desculpa para as crianças estarem ali”, afirma Carol.
“Claro que já é incrível ver a evolução das crianças [no esporte], mas quero que seja um espaço de acolhimento. Que elas se sintam bem para dividir seus problemas. Me motivou muito a ideia de levar um lanche saudável. Tenho dois filhos [José, 9, e Salvador, 4] e fico muito feliz quando eles fazem uma atividade esportiva e comem uma fruta, o meu dia começa bem.”
Nessa rede de apoiadores, há amigos como o dono de um quiosque na praia (La Carioca) que oferece saladas de frutas e o proprietário de uma cafeteria (Da Casa da Tatá) que, eventualmente, fornece doces.
“Isso faz uma diferença, eles voltam para casa tão felizes. Não é um espaço só para jogar vôlei. Toda terça-feira, a psicóloga conversa com eles, fazem brincadeira, e vamos nos conhecendo”, conta Carol.
“Nesse final de semana levamos alguns ao teatro, começamos a perceber quando eles estão cabisbaixos, precisando de uma conversa, quem veio com a expectativa para comer… Tem crianças, por exemplo, que querem levar um sanduíche para o irmão que não pôde vir.”
Há outras pessoas no local durante as aulas, que se prontificam a monitorar os menores -como nos cuidados com a máscara e o álcool gel, por exemplo.
Atualmente há 21 crianças e adolescentes aguardando por uma vaga no projeto, o que deixa a jogadora aflita. “Lista de espera é um horror, gostaríamos de atender a todos. É tão ruim dizer não, mas eu preciso me organizar. Tomara que a gente consiga apoio para contratar professores e receber uma turma maior.”
Antes de cada inscrição, a psicóloga conduz entrevista com pais ou responsáveis pelos alunos e visita suas respectivas moradias. A maioria deles habita na comunidade Cruzada São Sebastião, um conjunto habitacional incrustado no Leblon que reúne quase 7.000 moradores.
O bairro da zona sul do Rio tem um dos metros quadrados mais caros do país, avaliado em agosto a R$ 21.710, em média, segundo o indicador FipeZap, que mede o preço de venda de imóveis nas capitais brasileiras.
A população majoritária da Cruzada São Sebastião é composta por pessoas de baixa renda e escolaridade, que ainda lidam com o estigma do tráfico de drogas, liderado no conjunto pela facção Comando Vermelho.
“Eu vivo no Rio de Janeiro, uma cidade que escancara a desigualdade social. A praia parece ser um lugar democrático, mas evidencia como as crianças que moram na Cruzada tomam dura a cada esquina do Leblon. Você nota as mulheres escondendo suas bolsas”, afirma Carol, cria de Ipanema e filha da ex-jogadora de vôlei Isabel Salgado.
“Sou de uma família privilegiada, o esporte me deu acesso a tudo, abriu minha cabeça e pude viajar pelo mundo. Agora, imagina para uma criança que não tem essa oportunidade? Cabe a gente fazer a diferença.”
Crítica do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), Carol se apega aos exemplos de solidariedades que tem experimentado com o Instituto Levante.
“Ao tocar o projeto, vamos conhecendo pessoas incríveis. O Marcelo, por exemplo, que é dono de uma estamparia em São Paulo, tem uma ação social na Cracolândia e ao saber da nossa iniciativa nos ajudou com todas as ecobags (bolsa reutilizável)”, diz ela.
“A gente não pode se acostumar ao ver uma pessoa dormindo na rua e seguir o nosso caminho. Esse governo escancarou ainda mais essas questões.”
Em setembro do ano passado, Carol foi denunciada pelo Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) por ter dito “fora, Bolsonaro” durante transmissão do Sportv após conquistar medalha de bronze em uma etapa do Circuito Brasileiro de Vôlei de Praia.
O órgão entendeu que a jogadora feriu a imagem da Confederação Brasileira de Voleibol (CBV), patrocinada pelo Banco do Brasil desde 1991. Carol, então, recebeu multa de R$ 1.000, convertida em advertência pelo STJD posteriormente.
A punição não impediu Carol de expor sua insatisfação com o governo Bolsonaro. No dia 7 de setembro deste ano, feriado de aniversário da Independência do Brasil, ela voltou a pedir a saída do presidente.
“Muito triste este 7 de setembro. Usar essa data para celebrar ódio, violência, armas, mentiras e total desrespeito à democracia”, escreveu Carol.
A atleta também usou suas redes sociais para protestar contra as mensagens homofóbicas postadas pelo central Maurício Souza, 33, demitido pelo Minas Tênis Clube no último dia 27.
“Eu acho que o episódio só reforça uma coisa que, infelizmente, está muito latente na nossa sociedade: a intolerância. Quando ela não mata, destrói totalmente quem é ferido”, afirmou Carol.
Notícias ao Minuto Brasil – Esporte
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