LUCIANO TRINDADE
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Em 1992, a Dinamarca surpreendeu o mundo do futebol ao conquistar a Eurocopa. A seleção nem havia se classificado para o torneio, mas herdou a vaga da antiga Iugoslávia, impedida de atuar na competição por causa da guerra civil no país. Na decisão, os dinamarqueses derrotaram a poderosa Alemanha, então campeã mundial, por 2 a 0.
Em cinco jogos naquele campeonato, a equipe dinamarquesa marcou seis gols. Não era um time que fazia jus ao apelido pelo qual era conhecida, a “Dinamáquina”. Era uma equipe sólida, que evitava riscos. Tanto que, na final, recuou a bola para o goleiro Peter Schmeichel cinco vezes nos dois primeiros minutos, tamanha a sua cautela de atacar os alemães.
Pouco mais de um mês após o fim da Euro, seria a vez de a Espanha festejar um título, a medalha de ouro em casa, nos Jogos Olímpicos de Barcelona. O esquadrão espanhol, que entre outros nomes contava com Pep Guardiola em seu meio de campo, marcou 14 gols em seis jogos, 2,3 gol por partida, quase o dobro da média da Dinamarca na Euro, 1,2.
Para além da qualidade dos jogadores dinamarqueses e espanhóis, essa diferença ofensiva já começava a refletir uma importante mudança no futebol ocorrida entre os dois torneios: a proibição de o goleiro pegar a bola com as mãos após o recuo deliberado de um companheiro.
A nova regra foi instituída pela International Board com o objetivo de dar mais dinâmica aos jogos. A ideia era evitar a famosa “cera”, com ações que visam retardar o início da partida e dar um ritmo mais lento para o confronto. Antes dessa mudança, era comum os atletas recuarem a bola para o goleiro, que, com ela nas mãos, aproveitarem para ganhar tempo, deixando o jogo mais truncado.
Gilmar Rinaldi era um dos goleiros frequentemente chamados para a seleção brasileira na época em que a regra mudou. Ele se recorda de que, no começo, a adaptação foi difícil. “Antes, nós tínhamos um ‘escape’. Quando precisávamos dar uma segurada no jogo, eu lembro que o [ex-zagueiro] Oscar se aproximava e eu jogava a bola no peito dele e pegava de volta”, conta.
Com a nova regra, os atletas passaram a ter mais cautela na hora de acionar os goleiros, uma vez que eles teriam de dominar a bola com os pés, uma habilidade que nunca foi comum a maioria dos defensores das traves. “Se o cara fosse tão bom com os pés, estaria jogando na linha”, defende Gilmar, que foi reserva de Taffarel na conquista da Copa do Mundo de 1994.
Por outro lado, a mudança motivou muitos a desenvolverem esse recursos, tornando-os uma peça a mais na construção das jogadas. A ideia ganhou força com a nova regra, mas não era nova no futebol.
Johan Cruyff sempre foi um defensor de que todos os 11 jogadores deveriam desempenhar mais de uma função em campo. O goleiro que acabou ganhando a fama de ser o primeiro a saber jogar com os pés foi Jan Jongbloed, que fez parte do carrossel holandês no Mundial de 1974, na Alemanha.
O curioso é que, até um mês antes daquela Copa, ele tinha apenas uma convocação para a seleção. Acabaria ganhando uma chance única quando Jan van Beveren se machucou na preparação para o torneio. Para o lugar dele, Cruyff convenceu o técnico Rinus Michels a levar Jongbloed porque era amigo dele, mas principalmente porque sabia jogar com os pés.
“Ele tinha facilidade maior que os demais goleiros para jogar com os pés porque nas categorias amadoras era meia-esquerda”, conta o biógrafo de Yoeri van der Busken, autor de “Aparteling” (“Separação”, em holandês, ainda sem previsão de lançamento no Brasil), a biografia de Jan Jongbloed, publicada em junho.
Jongbloed, por vezes, jogava adiantado, quase como um líbero, dando mais opções ao time para a saída de bola. A escola holandesa influenciaria goleiros de vários países. Campeão do mundo com a Alemanha em 2014, Manuel Neuer tem como ídolo o também alemão Jens Lehmann, mas aponta como a sua maior referência Edwin van der Sar.
“Ele [Van der Sar] tinha outro nível. Poderia jogar com o pé esquerdo e direito e sair da área e sair para fazer cruzamentos. Ele estava presente como uma personalidade”, disse o goleiro do Bayern de Munique ao jornal The Guardian recentemente. Tanto pela seleção, como pelo clube, Neuer sempre se destacou por justamente ser uma peça a mais entre os homens de linha.
Para o goleiro Walter, ex-Corinthians e atualmente no Cuiabá, no entanto, não basta apenas a iniciativa e a habilidade do goleiro para que ele possa sair jogando com os pés e ser mais participativo. “Isso depende também do time e do treinador. Tem treinador que gosta de sair com a linha mais alta, outros preferem as linhas mais baixas”, diz. “O time todo tem que estar em sintonia”.
Dos treinadores da atualidades, um dos maiores adeptos de usar o goleiro para dar início as jogadas é Pep Guardiola, treinador do Manchester City. Para ele, o goleiro saber usar os pés é tão essencial quanto usar as mãos.
O ex-goleiro Fernando Prass, que se aposentou em 2021, sempre gostou de analisar os times montados pelo treinador espanhol e diz que ele soube extrair o melhor da mudança da regra do recuo.
“Quando teve a mudança, muitos viram como um problema, mas outros viram como um ganho. E o mais célebre nesse segundo ponto foi o Guardiola, que passou a usar o goleiro como forma de ter superioridade numérica”, disse o ex-jogador durante o evento “Fala Goleiro”, promovido pela empresa Poker, uma de suas patrocinadoras.
Presente no mesmo encontro, o treinador da seleção feminina de futebol, Thiago Mehl, disse que a forma como Guardiola e outros grandes técnicos utilizam os goleiros atualmente modificou a preparação desde as categorias de base.
“Antigamente, o treinamento tradicional do goleiro era totalmente a defesa de meta. Hoje, essa atenção é dividida, com uma porcentagem até alta, no trabalho com os pés. A modernidade exige isso, e os maiores clubes do mundo tem jogado usando os goleiros dessa forma”, diz. “Eu ainda vejo a defesa de meta como a função em que o goleiro é mais exigido e sempre vai ser, mas os goleiros têm sido formados para jogar com os pés também”, finaliza.
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