“Vocês trouxeram orgulho a seu país”, disse o presidente de Ruanda, Paul Kagame, ao posar para uma foto com a equipe de basquete local do Patriots, na última segunda-feira (31).
Na véspera, o time havia encerrado sua participação em um torneio africano da modalidade, promovido em conjunto com a poderosa NBA, a liga de basquete profissional americana. Ficou em quarto lugar, entre 12 equipes do continente.
Localizada no centro da África, com território equivalente ao de Alagoas, Ruanda foi escolhida a dedo para sediar a primeira edição da competição.
Foi apenas mais um exemplo do prestígio internacional desse pequeno país de 12 milhões de habitantes, mais associado ao genocídio de 1994, em que morreram entre 800 mil e 1 milhão de pessoas. Foi o maior massacre de civis desde o Holocausto, em termos proporcionais.
Elogiado por seus índices de desenvolvimento acima da média africana, boa infraestrutura e baixos níveis de corrupção, o país há tempos é considerado no Ocidente uma espécie de “primeiro aluno da classe”. Líderes internacionais fazem fila para tirar foto com Kagame e são generosos na doação de recursos.
Recentemente, no entanto, essa agenda positiva tem rivalizado com um lado mais obscuro do país, em que ONGs são perseguidas, dissidentes políticos morrem em circunstâncias misteriosas, a imprensa é controlada e a oposição não encontra espaço para respirar.
Kagame, ex-líder rebelde que derrubou o regime responsável pelo genocídio, segue comandando o país de forma incontestável há 27 anos.
Quando o torneio de basquete foi anunciado, o principal dirigente da NBA, Adam Silver, foi alvo de uma carta aberta protestando contra a realização do evento no país.
A autora era Taciana Rusesabagina, que vive exilada nos EUA. Ela é mulher de Paul Rusesabagina, que ficou famoso por ter protegido civis da etnia tutsi durante o genocídio, história contada no filme “Hotel Ruanda”, de 2004.
Crítico de Kagame, ele foi preso em 2020 sob acusação de incitação ao terrorismo e aguarda julgamento.
“Pedimos a você, em nome de nosso marido e pai, assim como de incontáveis outras vítimas do regime, que por favor reconsidere sua escolha de sediar o torneio em Ruanda”, escreveu Taciana.
Ela pediu ainda que o dirigente da NBA “pressione o governo de Ruanda a melhorar drasticamente o tratamento de outros dissidentes e de seus cidadãos em geral”. Não houve mudança nos planos do torneio, no entanto.
Também houve protestos recentes contra a escolha de Ruanda para sediar a reunião de cúpula da Comunidade Britânica, entidade que reúne 54 países e é nominalmente chefiada pela rainha Elizabeth 2ª, do Reino Unido. O evento, que ocorreria em junho, acabou adiado para o ano que vem em razão da Covid-19.
A pressão teve o acréscimo em março de um livro lançado pela jornalista britânica Michela Wrong, especializada em temas africanos.
“Do Not Disturb” (não perturbe) narra o misterioso assassinato do ex-chefe de inteligência de Kagame, que havia se tornado um crítico dele, num hotel na África do Sul, em 2014. A obra, que tem tido grande repercussão na imprensa internacional, menciona outros abusos cometidos pelo regime desde os anos 1990.
“Kagame sempre tem mais de 95% dos votos, então as eleições perderam o sentido. Diplomatas têm seus emails monitorados. E é muito difícil saber o que os ruandeses pensam do regime, porque se você for a alguma vila a perguntar, ninguém vai te dar uma resposta honesta, por medo”, disse Wrong em um recente debate promovido pelo Instituto Sul-Africano de Relações Exteriores (SAIIA, na sigla em inglês).
Kagame, 63, foi reeleito em 2017 para um terceiro mandato de sete anos com 98,79% dos votos. Antes, havia sido ministro da Defesa e vice-presidente, mas já era quem de fato mandava no país.
Pesquisadora do SAIIA, Stephanie Wolters afirma que há um sentimento de culpa coletiva da comunidade internacional por ter lavado as mãos durante o genocídio, e que isso afeta até o julgamento sobre o governo.
“Houve uma pré-disposição de olhar para o outro lado e não ver os primeiros sinais de autoritarismo do atual regime. Levou mais tempo para que aliados respondessem a esse comportamento, e isso parece estar acontecendo agora”, diz Wolters, especializada em política da África central.
Segundo ela, Ruanda também é encarada como um elemento de desestabilização regional, especialmente em relação à República Democrática do Congo. O país vizinho é rico em minerais e sofre com grupos armados patrocinados por Kagame.
Internamente, afirma ela, o genocídio é muitas vezes usado como um pretexto conveniente para a prática de repressão.
“Em Ruanda há algumas coisas que você não pode dizer sobre o genocídio. Não se pode falar de etnias, por exemplo. O governo diz que isso é necessário para evitar a repetição da violência.”
O maior salvo conduto para Kagame é seu desempenho econômico, embora tenham surgido acusações de manipulação de dados.
Oficialmente, o país teve crescimento médio anual de 7,2% na década passada, segundo o Banco Mundial. O índice de pobreza caiu de 77% em 2001 para 55% em 2017, muito graças à ajuda estrangeira.
Ruanda tem sediado encontros da versão africana do Fórum Econômico Mundial, possui alguns dos arranha-céus mais modernos do continente, é sede de startups e um destino turístico emergente, com suas intermináveis colinas, lagos vulcânicos e montanhas povoadas de gorilas.
Kagame tem boa relação com figuras internacionais como os ex-presidentes americanos Bill Clinton e Barack Obama, o ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair e o filantropo Bill Gates.
No mês passado, o presidente da França, Emmanuel Macron, visitou o país, pedindo desculpas pelo apoio dado ao regime de maioria hutu que massacrou a minoria tutsi no genocídio.
Ao mesmo tempo, o país ocupa a 156ª posição no ranking de liberdade de imprensa da ONG Repórteres Sem Fronteiras e marca apenas 21 pontos de 100 possíveis pelos critérios da Freedom House, sendo considerado “não livre”.
Para Wolters, essa realidade é tolerada por muitos no Ocidente. “Há quem acredite que para alguns países da África se desenvolverem você precisa de um ditador benevolente”, diz ela.
Professor de economia da Universidade da Cidade do Cabo, Carlos Lopes tem uma visão mais benigna de Kagame, com quem tem contato constante.
Nascido na Guiné Bissau, ele integra um grupo de trabalho da União Africana sobre reformas nas instituições do continente que é chefiado pelo presidente de Ruanda.
“Kagame é um indivíduo que tem uma enorme capacidade de escuta. Faz um esforço extraordinário, fora do comum para escutar opiniões informadas. Não é o que eu associo a uma pessoa autocrática”, afirma.
Segundo Lopes, a ênfase dada por democracias ocidentais às liberdades individuais não se aplica a um país que passou pelo trauma do genocídio.
“O foco no individualismo introduziria uma democracia competitiva muito boa para a Escandinávia, mas não tão boa para Ruanda depois de um genocídio. A situação de cada país é muito específica”, diz.
O professor acredita que a pressão internacional não causará prejuízos reais à imagem do país. “Não tem impacto real. Há uma corrida dos líderes globais para ter o Kagame na fotografia. Ele representa a nova África”, diz.
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