BRUXELAS, BÉLGICA (FOLHAPRESS) – O homem que já foi principal conselheiro do premiê britânico, Boris Johnson, assumiu nesta quarta (26) o papel de um de seus principais algozes. “Dezenas de milhares de pessoas morreram desnecessariamente”, afirmou Dominic Cummings, ao depor durante sete horas sobre o combate do governo à pandemia de coronavírus, no Parlamento do Reino Unido.
Segundo o ex-assessor, o premiê era “inadequado para a função” por ignorar conselhos científicos e resistir à necessidade de um confinamento, e a falta de liderança levou a “falhas catastróficas” nos primeiros meses de 2020.
Um dos pontos mais controversos no depoimento de Cummings foi sobre a intenção inicial do governo de esperar que a população atingisse a chamada “imunidade de rebanho” -quando a parcela de pessoas que já desenvolveram anticorpos contra uma doença derruba naturalmente a taxa de contágio.
Segundo o ex-conselheiro, o primeiro-ministro foi aconselhado a dizer ao público, em rede nacional de TV, que a Covid era “como catapora” e que as pessoas deveriam fazer “festas de catapora” para espalhar mais rapidamente o vírus.
A hipótese da imunidade de rebanho chegou a ser enunciada publicamente em março de 2020 pelo conselheiro científico de Boris, Patrick Vallence, mas os detalhes relatados por Cummings atingem a imagem de seu ex-aliado justamente quando Boris parecia estar recuperando a aprovação do público, com uma das políticas de vacinação mais bem-sucedidas do mundo.
O Reino Unido tem o quinto maior número de óbitos provocados por Covid-19 no mundo: 128 mil desde o começo da pandemia. Em relação à população, é o 17º, com 187 mortes por 100 mil habitantes. Já receberam ao menos uma dose de imunizante 72% dos adultos do Reino Unido, e 44% estão completamente vacinados.
Cummings participou do governo até novembro de 2020, quando disputas internas o forçaram a sair. Aos deputados, ele disse que tentava criar “um cordão de segurança em torno do premiê, para impedir decisões extremamente equivocadas”, mas chegou a um beco sem saída quando Boris se recusou a implantar um novo lockdown em setembro. De acordo com o ex-conselheiro, o premiê dizia que o impacto econômico dessa medida seria pior que o da pandemia.
“O fato de sua namorada [Carrie Symonds] também querer se livrar de mim era relevante, mas não era o cerne do problema”, afirmou.
No início da audiência no Parlamento, ele pediu desculpas às famílias dos mortos “pelos erros que foram cometidos e pelos meus próprios erros”. Em abril do ano passado, Cummings desrespeitou as regras de confinamento ao dirigir 400 km para levar sua família até a casa dos sogros e, duas semanas depois, ao voltar para Londres.
“A verdade é que ministros, altos funcionários e conselheiros como eu ficaram desastrosamente aquém dos padrões que o público tem o direito de esperar de seu governo em uma crise como esta”, disse Cummings. Embora sua ligação com Boris fosse estreita desde a campanha do brexit, em 2016, ele afirmou que os eleitores britânicos tiveram péssimas opções nas eleições de dezembro de 2019: “Havia muitos outros melhores para conduzir o país”.
O ex-assessor afirmou que Boris não levava a Covid a sério no começo da pandemia -“achava que era uma outra gripe suína”- e chegou a dizer que pediria ao diretor médico do Reino Unido, Chris Whitty, que o inoculasse com o coronavírus ao vivo, na TV, “para que todos percebam que não há nada para se temer”.
O premiê também resistiu ao fechamento de fronteiras, de acordo com o ex-aliado. “Ele disse que queria ser o prefeito de ‘Tubarão’ “, afirmou, em referência ao personagem do filme dirigido por Steven Spielberg, que insiste em manter as praias de sua cidade abertas apesar dos ataques de um tubarão gigante.
Outro alvo do ex-conselheiro foi o secretário de Saúde, Matt Hancock, que “mentiu em várias ocasiões, em reuniões do governo e publicamente”. Entre as inverdades ele cita declarações em que o secretário disse que todos os doentes recebiam o tratamento necessário, em meados do ano passado. “Ele sabia que era mentira. Tinha sido avisado pelo conselheiro científico e pelo médico-chefe”, declarou.
Segundo Cummings, houve 15 ou 20 ocasiões em que Hancock deveria ter sido demitido por “comportamento criminoso e vergonhoso, que causou sérios danos”. Entre os casos estão o fracasso em cumprir as promessas de implantar testes em massa no ano passado e a permissão para que pacientes não testados voltassem para asilos de idosos, agravando a contaminação. O ex-conselheiro também elogiou as equipes de saúde do Reino Unido, que descreveu como “leões conduzidos por burros”.
Questionado pelo líder trabalhista Keir Starmer sobre as acusações de seu ex-aliado, o primeiro-ministro disse: “O manejo da pandemia foi a coisa mais difícil que este governo teve de fazer em muito tempo. Nenhuma das decisões foi fácil, e entrar em um confinamento é uma coisa traumática, mas em todas as fases tentamos minimizar a perda de vidas”.
A gestão da pandemia pelo governo conservador será investigada pelos comitês de saúde e ciência da Câmara dos Comuns (equivalente à Câmara dos Deputados), embora Boris já tenha prometido uma investigação independente nos próximos meses. Segundo o premiê, iniciar a auditoria agora desviaria “tempo e esforço valioso agora, quando ainda estamos em pandemia”.
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